...É PRECISO TER ASAS,PARA SE AMAR O ABISMO...

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O que não preciso,para ser feliz...




"Quem trouxe a fome foi o frigorifico”


O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, gelados etc. A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, submete-nos ao consumo de símbolos.

O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade.

É próprio do humano -e nisso também nos diferenciamos dos animais-, manipular o alimento que se ingere.

A refeição exige preparação, criatividade, e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico.

A ingestão de alimentos por um gato ou cão é um atavismo desprovido de arte.

Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimonia: sentar-se à mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de outras pessoas.

Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis.

Parece-nos desumano comer de pé ou sozinho, tirando o alimento directamente do tacho. Marx já tinha compreendido o”peso” do frigorifico.

Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor dos seus respectivos bens.

Portanto, em si o homem não tem valor para nós".

O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos.

As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social.

Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo da pobreza e à cultura da exclusão.

Para o povo maori da Nova Zelândia, cada coisa, e não apenas as pessoas, tem alma.

Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa interacção matéria-espírito. Ora, se nos dizem que um aborígine cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, de certeza faremos um olhar de desdém.

Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um vinho guardado na adega, uma jóia?

Assim como um objecto se associa ao seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da marca.

Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim um Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Brion.

A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista, a gata borralheira transforma-se em Cinderela...

Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder.

Pois a avassaladora industria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos.

E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade.

Não importa que a pessoa seja imbecil.

Revestida de objectos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia.

Ela torna-se também objecto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega, mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc.

Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas.

Outrora, a loja, a mercearia a feira, criavam vínculos entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações de vizinhança.

Agora o supermercado suprime a presença humana.

Lá está a prateleira abarrotada de produtos sedutoramente embalados.

Ali, a frustração da falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo.

"Nada poderia ser maior que a sedução" -diz Jean Baudrillard- "nem mesmo a ordem que a destrói".

E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet.

Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja.

Vou com frequência a livrarias de shoppings.

Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objectos de consumo, vendedores acercam-se de mim perguntando se necessito de alguma coisa.

"Não, obrigada. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo.

Olham-me intrigados.

Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".

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